quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O PREÇO DA HONRA


Um texto de Geraldo Pereira


O Nordeste é uma Região de muitas histórias, de lendas cujas narrativas passam de geração a geração, nas palavras carinhosas das avós ou no frasear lúdico das tias velhas, condenadas ao caritó, quase sempre, no outrora dos anos. Gente do cabelo branquinho, como a neve que recobre a imensidão das montanhas de onde vieram muitas dessas fábulas. A Comadre Florzinha, a Caipora ou o Curupira foram cantados e decantados por Ascenço Ferreira, em versos que resgatam a pureza do popular; de um popular, nem sempre rural, porque urbanizado, também ou rurbanizado. Histórias e estórias que preenchem o imaginário da gente matuta e da gente sertaneja, cujo tempo, tantas vezes, é consumido em conversas fiadas em fim de tarde nos alpendres modestos de simplórias moradias ou nas amplas varandas das casas grandes. Essa arte de fiar conversa ainda persiste nos interiores do Brasil.

É uma história assim que ouvi de quem nasceu e se criou na Paraíba, de nome Margarida Hercílio, lugar como muitos outros deste Nordeste de Deus, sofrido e ao mesmo tempo resignado, cheio de crenças e repleto de assombrações, onde o povo, à falta do que fazer ou em que se ocupar, levanta essas questões ligadas às almas penadas ou aos espíritos zombeteiros. Povo de muita fé, de esperança ainda maior, carregado de amor, de zelo, de piedade e devoção. O caso se passou pras bandas do Sítio Pedra Branca, onde dois grandes amigos tinham se juntado numa sociedade informal para fabricar sapatos e seguiam muitíssimo bem no mister de oferecer ao couro a desejada forma de um calçado, que desse conforto e permitisse o andar ou o passear pelas picadas e pelos atalhos abertos no meio do mato.

Um dos amigos era encarregado de comprar o couro a muitas léguas de distância, e fazia o caminho todas às semanas, em dia e hora acertados antes com o fornecedor, contanto que não falhasse o esforço e a missão. O material já vinha curtido, pronto para a manufatura. Mas no caminho o viajante nunca deixou de flertar com a morena bonita e faceira que morava perto do ingazeiro. Os olhares se cruzavam quando o galope do alazão dava sinais de proximidade daquele passante habitual, semanal sempre. Até que se achegaram e se enamoraram, para depois noivarem. E conversa vai, conversa vem, Mariazinha foi desonrada por Miguel de Santana. E na roça, ainda hoje, prevalecem os costumes da virgindade preservada e da honra sustentada a todo custo. A gravidez despontou e o casal jurava fidelidade eterna.

A fabriqueta dos amigos ia cada vez melhor, com a produção aumentando a olhos vistos. Sapatos e mais sapatos eram vendidos e para a nova demanda o couro vinha se tornando escasso. Era preciso buscar novo fornecedor e a localidade escolhida por Miguel, comprador oficial da quase empresa que se formara, foi Santa Cecília, para onde partiu assim que pôde. Foi esquipando em seu alazão de estimação, mas não pôde evitar que numa ribanceira despencassem os dois, o animal valente e o homem encarregado de trazer o couro: tombaram e morreram. Por lá ficaram, no ermo do lugar.

Mas Miguel tinha uma dívida que não se deixa neste mundo de Deus, sequer por morte. Por isso, a alma do moço teve que ficar nos afazeres da sapataria, forjando os calçados todos que podia, numa proporção nunca vista. Sapatos e mais sapatos todos os dias. Ao sócio explicara que passara por um acidente grave, ficara perdido no meio dos agrestes e para não morrer de fome vendera o cavalo.

O companheiro, todavia, Jonas de prenome, achava estranho o fato de seu velho amigo nunca almoçar em sua companhia. No intervalo do meio-dia desaparecia e entrava na mata. Não resistiu, certa vez, e foi atrás de ver o que se passava o que fazia Miguel, afinal, por entre as árvores. E viu o sócio tomado por um arco de fogo que o consumia, queimando-lhe as carnes e fazendo arder em chamas todo o corpo. Escutou, com os ouvidos bem abertos, os gemidos dele, o sofrimento que passava ali, com aquele castigo que ignorava as razões. Não era possível admitir isso, ficar sem saber desse martírio a que se submetia Miguel e resolveu, então, falar e pedir explicações. E foi com perplexidade que ouviu na voz trêmula do colega a narrativa dos fatos. E escutara, mais do que atento, a dívida que deixara e de que precisava agora.

Não descansaria em paz se Jonas não se casasse com Mariazinha e dessa forma pagasse a desonra que fez. O companheiro de jornada pensou e refletiu com os seus botões. No fim, no fim, decidiu-se pelo casamento, mesmo sem conhecer a noiva, parceira no doravante dos dias e partiu para a casa da família. Chegando lá conversou com a moça em particular, vencendo os protestos do genitor admirado, desorientado, indeciso e contou o ocorrido, assistindo as lágrimas rolando na face jovem da quase menina, como era. Disse que casaria para salvar a sua honra e pediu a mão dela ao pai. Marcaram a data e na igreja do lugarejo fizeram a cerimônia, sempre com a presença, visível apenas para Jonas, da alma de Miguel.

E quando voltaram para casa, Miguel como acompanhante cativo daquele périplo, viram a toalha branca posta na frente da porta de entrada, simbolizando, como sucede nos sertões esturricados, a preservação da honra. E pisando no alvo do pano despediram-se os noivos de seus pais e Jonas abraçou-se com o amigo que sofria com o fogo quase eterno. E ainda viu, mais adiante, o companheiro de tantos anos subindo aos céus numa roda de luz cuja luminosidade encantava a qualquer um que pudesse vislumbrar a cena.

E por lá, ainda, se conta nesses anos de meu Deus, que Miguel entrou no reino dos céus, mas garantiu a salvação, também, do amigo Jonas, pela fidelidade de uma amizade que só se encontra nos distantes sertões, onde a honra de uma moça vale o sacrifício de uma vida. Entre os dois está Mariazinha, toda vestida de branco, uma noiva que viveu feliz, teve muitos filhos, netos e bisnetos.

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